terça-feira, 26 de agosto de 2008

Poesia de tempos idos que não voltam mais...Graças...

Ah! Minha amargura
Fardo forte de compostura
Que finca fatos de loucura
Nesse meus atos
Sem visão de fato.

Calada

Omitir é submeter-se à ausência
É ignorar uma presença,
Mentir sem nada dizer...
É fingir que não lembro o quê.

A omissão é a negação da verdade
Sem contradição...
Há submissão na sinceridade...
Pelo menos no coração.

Se eu me esquecer de mim...

O meu maior medo é o da dependência. Ser capaz de emancipar-me de meu próprio pertencimento é uma tarefa difícil. Sendo sozinha posso ser única, posso mostrar minha desvirtuosidade apenas para minha mente. Não preciso passar por julgamentos e juízos de valor de um outro que, provavelmente, nunca será capaz de compreender minha fraqueza. Mostrar quem eu sou ou quem eu gostaria de ser se pudesse me desprender da ética e da moral a que sou submetida com ou sem meu consentimento é me entregar à imperfeição humana.
Agir com destreza é minha máxima, minha lei de vida. Uma das frases mais importantes proclamada pelos judeus è a que diz: "Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha destra perca sua destreza". Esse juramento é a sobreposição de Jerusalém ao erro humano do esquecimento. Eu estou disposta a esquecer "Jerusalém", mas não de afirmar e reconhecer meu erro do esquecimento. A minha punição não seria perder minha destreza, mas sim lidar com a declaração: esqueci.
O meu juramento não aceita quebras, rupturas. Portanto, se eu assumo que sou uma, continuarei sendo de tal modo. A mudança de quem eu sou se dá através do contato íntimo e intenso com o outro. Mas se o outro se aproxima de quem eu sou, ele se aproxima da matriz do meu eu. Porém, ao se embrenhar no meu âmago, acaba por perceber que talvez o meu eu exposto seja o meu eu de exposição, e não o meu eu influenciado pela presença alheia.
O espelho também serve como ruptura. O espelho olha com olhos próprios o que quem se reflete julga ser de ângulo único. A linearidade que o espelho corrompo transpõe em imagens a idéia de um ser estético. Não que a estética seja de fato relevante, mas o conhecimento que se tem dela o é. A forma física não interessa. Interessa o reconhecimento de sua estrutura. E, se para ver melhor é preciso ver de vários ângulos, talvez eu prefira permanecer cega de mim mesma e feliz com a fugaz imaginação de quem eu sou.

Sendo assim, esquecer de Jerusalém é desconsiderar quem no fundo eu me propus ser. E, se me fiz certa proposta, defenderei com todas as garras e em todos os ângulos a minha fronteira. Assim ninguém nunca será capaz de destruir e de destituir-me da única certeza que eu tenho.

Quando a morte bate à sua porta

Acordou no horário de costume. Era um dia qualquer de rotina. Gostava de dias como aquele. Não havia necessidade de se preocupar com nada. Todas as ações já eram mecânicas, programadas, desde o xixi matinal, ao ônibus para o trabalho.
Tomou seu café da manhã, preparado minuciosamente. A única surpresa do dia seria a manchete capa do jornal, que, na verdade, nem era tão inesperada assim. Haveria algo sobre esportes, sobre política, corrupção e cultura na primeira página.

Saiu de casa caminhando. O ponto de ônibus sentido centro ficava perto de sua casa e não tardou a chegar. Entrou e encontrou todos os lugares ocupados. Iria em pé durante a viagem. Tudo parecia igual. Tudo estava igual, inclusive o trocador e o motorista, os quais conhecia pelos nomes, visto que trabalhava há oito anos na mesma firma.
Apesar de ter uma vida sem surpresas, gostava da idéia de segurança que essa mesmice transmitia. Conhecia assim os limites próprios e os alheios.

Pela primeira vez, no entanto, algo mudou. Uma nova sensação lhe acometeu. Poderia ser um acontecimento que mudaria para sempre sua rotina. Em meio à condução lotada, em meio a barulhos de trânsito, vozes e roncos, num dado momento sentiu a vida esvair: era uma pontada no coração. Uma forte e horrível sensação. Sentia dores como nunca antes. O que lhe acontecera?
Lembrou, então, de um programa sobre plantões médicos. Estava enfartando. Tinha certeza.
Era a mesma descrição da simulação feita na televisão. Não teria escapatória: dentro de poucos minutos iria morrer ali, em meio à multidão tão reconhecível quanto insignificante. As dores não cessavam.

- Meu deus, quanto tempo demoraria até a morte chegar? - pensou, ritmado às batidas fulminantes do coração.

Decidiu descer do ônibus. Não poderia passar seus últimos momentos de vida ali, naquela sardinha humana.
A praia estava à sua frente. Puxou a cordinha poupando o resquício de força que ainda tinha. Gostaria de caminhar até o mar. Com dificuldade, arrastou-se ao oceano. Tirou os sapatos, jogou a pasta ao lado e molhou os pés. Deliciou-se por horas assim. O celular tocava desesperadamente, mas, naquele momento, nada mais importava.
O dia foi passando. Comprou uma água de côco do ambulante e continuou a molhar-se. A água alcançava seus joelhos e molhava suas calças.

As dores no coração continuavam palpitando, mas seu fim não chegava. Passou dois dias assim: a temer e torcer pelo inevitável bater das botas.
Pensou no porquê daquilo tudo e o que havia realizado em sua vida. Não havia plantado nenhuma árvore... Não cultivara nada... Não amara ninguém. Não tivera filhos e a única coisa que havia escrito fora o relatória anual da empresa de despesas com produtos sanitários. Poderia morrer. Estava pronto. Estava na hora, sabia. Mas a morte parecia torturá-lo.
Terminaria esperando-a em sua cama. A televisão se encarregaria de passar o tempo.

Dormiu e esperou por 3 dias. A dor já estava fazendo parte de seu ritual quando o telefone tocou. Não atenderia; estava convicto, decidido. Seu chefe o ameaçava enquanto mais dores acometiam. Agora sentia o abdômen corroer cadenciadamente.

- Cadê você? Só me apareça aqui morto porque senão quem te mata sou eu! Precisamos calcular quantos pacotes de papel higiênico iremos disponibilizar para a festa.

Ele estava morrendo e sua preocupação deveria ser pacotes de papel higiênico para a festa de final de ano! Papel higiênico! Papel higiênico...
Lembrou-se que não usava tal produto desde que começaram as dores. Foi ao banheiro, ligou o rádio e sentou-se à privada.

- Bom dia, ouvintes!

Bom dia?! Ele estava morrendo há cinco! O que havia de bom nisso?

Passadas sete músicas e três intervalos comerciais, sentiu. Era o fim. Não havia dúvidas. Um estrondoso som acompanhou as dores no peito. Outros estrondoses sons e um cheiro podre acompanharam as dores abdominais. Quase não conseguia enxergar, dado o desespero.

- Estou no inferno? Já sinto o enxofre! Ai meu deus! Perdoe meus pecados! Me leve para o céu!

Quase inconsciente, piscou os olhos. Ao abri-los, a luz estava lá. Deus havia ouvido suas preces? A luz, todavia, piscava e ele percebeu que o motivo era o defeito de sua lâmpada fluorescente que, por ter se tornado parte da rotina, ele não trocara.

Ele não havia ido nem para o inferno, nem para o céu. As dores, no entanto, cessaram e ele estava vivo como sempre. Suado, cansado, mas vivivinho, vivinho. Levantou-se aliviado e feliz e se deu conta de toda aquela dor. Ele havia liberado seu intestino.