terça-feira, 26 de agosto de 2008

Quando a morte bate à sua porta

Acordou no horário de costume. Era um dia qualquer de rotina. Gostava de dias como aquele. Não havia necessidade de se preocupar com nada. Todas as ações já eram mecânicas, programadas, desde o xixi matinal, ao ônibus para o trabalho.
Tomou seu café da manhã, preparado minuciosamente. A única surpresa do dia seria a manchete capa do jornal, que, na verdade, nem era tão inesperada assim. Haveria algo sobre esportes, sobre política, corrupção e cultura na primeira página.

Saiu de casa caminhando. O ponto de ônibus sentido centro ficava perto de sua casa e não tardou a chegar. Entrou e encontrou todos os lugares ocupados. Iria em pé durante a viagem. Tudo parecia igual. Tudo estava igual, inclusive o trocador e o motorista, os quais conhecia pelos nomes, visto que trabalhava há oito anos na mesma firma.
Apesar de ter uma vida sem surpresas, gostava da idéia de segurança que essa mesmice transmitia. Conhecia assim os limites próprios e os alheios.

Pela primeira vez, no entanto, algo mudou. Uma nova sensação lhe acometeu. Poderia ser um acontecimento que mudaria para sempre sua rotina. Em meio à condução lotada, em meio a barulhos de trânsito, vozes e roncos, num dado momento sentiu a vida esvair: era uma pontada no coração. Uma forte e horrível sensação. Sentia dores como nunca antes. O que lhe acontecera?
Lembrou, então, de um programa sobre plantões médicos. Estava enfartando. Tinha certeza.
Era a mesma descrição da simulação feita na televisão. Não teria escapatória: dentro de poucos minutos iria morrer ali, em meio à multidão tão reconhecível quanto insignificante. As dores não cessavam.

- Meu deus, quanto tempo demoraria até a morte chegar? - pensou, ritmado às batidas fulminantes do coração.

Decidiu descer do ônibus. Não poderia passar seus últimos momentos de vida ali, naquela sardinha humana.
A praia estava à sua frente. Puxou a cordinha poupando o resquício de força que ainda tinha. Gostaria de caminhar até o mar. Com dificuldade, arrastou-se ao oceano. Tirou os sapatos, jogou a pasta ao lado e molhou os pés. Deliciou-se por horas assim. O celular tocava desesperadamente, mas, naquele momento, nada mais importava.
O dia foi passando. Comprou uma água de côco do ambulante e continuou a molhar-se. A água alcançava seus joelhos e molhava suas calças.

As dores no coração continuavam palpitando, mas seu fim não chegava. Passou dois dias assim: a temer e torcer pelo inevitável bater das botas.
Pensou no porquê daquilo tudo e o que havia realizado em sua vida. Não havia plantado nenhuma árvore... Não cultivara nada... Não amara ninguém. Não tivera filhos e a única coisa que havia escrito fora o relatória anual da empresa de despesas com produtos sanitários. Poderia morrer. Estava pronto. Estava na hora, sabia. Mas a morte parecia torturá-lo.
Terminaria esperando-a em sua cama. A televisão se encarregaria de passar o tempo.

Dormiu e esperou por 3 dias. A dor já estava fazendo parte de seu ritual quando o telefone tocou. Não atenderia; estava convicto, decidido. Seu chefe o ameaçava enquanto mais dores acometiam. Agora sentia o abdômen corroer cadenciadamente.

- Cadê você? Só me apareça aqui morto porque senão quem te mata sou eu! Precisamos calcular quantos pacotes de papel higiênico iremos disponibilizar para a festa.

Ele estava morrendo e sua preocupação deveria ser pacotes de papel higiênico para a festa de final de ano! Papel higiênico! Papel higiênico...
Lembrou-se que não usava tal produto desde que começaram as dores. Foi ao banheiro, ligou o rádio e sentou-se à privada.

- Bom dia, ouvintes!

Bom dia?! Ele estava morrendo há cinco! O que havia de bom nisso?

Passadas sete músicas e três intervalos comerciais, sentiu. Era o fim. Não havia dúvidas. Um estrondoso som acompanhou as dores no peito. Outros estrondoses sons e um cheiro podre acompanharam as dores abdominais. Quase não conseguia enxergar, dado o desespero.

- Estou no inferno? Já sinto o enxofre! Ai meu deus! Perdoe meus pecados! Me leve para o céu!

Quase inconsciente, piscou os olhos. Ao abri-los, a luz estava lá. Deus havia ouvido suas preces? A luz, todavia, piscava e ele percebeu que o motivo era o defeito de sua lâmpada fluorescente que, por ter se tornado parte da rotina, ele não trocara.

Ele não havia ido nem para o inferno, nem para o céu. As dores, no entanto, cessaram e ele estava vivo como sempre. Suado, cansado, mas vivivinho, vivinho. Levantou-se aliviado e feliz e se deu conta de toda aquela dor. Ele havia liberado seu intestino.

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